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16.1.06

Teses


Proença não tolera certas coisas. Aliás, ele costuma dizer que certas coisas são imperdoáveis, mas ao mesmo tempo alimentam o seu lado criativo e observador. Era o que acreditava.

Certa feita, Proença estava em um aniversário na casa de uma amiga. Tinha várias coisas típicas de festejos, como cerveja e salgados, que ele curte obviamente. Só uma coisa conseguia tirá-lo do sério nessas festas. Proença não tolerava videokês. E a Aline inventou de alugar um desses aparelhinhos para descontrair a festa. O intolerante Proença dizia que era possível definir o caráter de uma pessoa pelas coisas simples que ela faz, inclusive cantar no videokê. Ao cantar, ele sabia se o intérprete era um sujeito legal ou não. E bastava ele perceber que alguém estava, em menos de uma hora, cantando “era um garoto que como eu” pela quarta vez para dizer aos próprios botões que o tal, no fundo, não passava de um egocêntrico.

A teoria do Proença era simples: pelas nossas atitudes e, principalmente, pela nossa falta de consideração com os outros, é fácil enquadrar qualquer um em determinadas categorias. A descoberta do videokê ocorreu naquele feriado na praia, quando conheceu o namorado de uma prima, um sujeito de uns 30 anos com ar de brincalhão chamado Silveira. Ao contrário dos demais, Proença costuma dizer que não é primeira impressão que fica, mas sim a que percebemos quando se costuma dar a alguém a oportunidade de exercer algum grau de poder. E não foi quando o Silveira chegou com um punhado de piadas e todo sorriso na casa que o Proença fez sua avaliação. Ele não se enganou, esperou todos tecerem mil elogios ao rapaz "tão simpático" e só descobriu a real índole do novo parente quando ouviu sua interpretação de "Robocop Gay" pela segunda vez. "Esse cara se acha muito engraçado", foi a sua sentença.

A Kátia, sua esposa, que era obrigada muitas vezes a controlar o marido dos acessos de azedume, levava tudo numa boa. Mas nem mesmo ela ficava incólume das teorias "proencianas". Proença amava de verdade sua esposa, mas alguns hábitos de casados já haviam começado a se manifestar e era um terreno fértil de estudos. O marido de Kátia tinha severas dúvidas da consideração da esposa quando abria a farmacinha do banheiro de manhã e via um tubo novinho de pasta de dente espremido bem no meio, quase no início. Sua escova de dente era testemunha de relatos como: "o que pensa alguém que esquece da existência das outras pessoas e simplesmente ignora que uma pasta deve ser apertada na ponta?". Ele arrumava o tubo, fazia sua higiene, e proferia: “Egoísta”.

O caminho para o trabalho era outro campo de estudos. Era no trânsito, inclusive, onde o Proença mais exercitava suas observações de outros seres e onde, ao mesmo tempo, seu ímpeto de desagravo aos maus hábitos mais crescia. De todas as coisas irritantes possíveis de acontecer no caminho, nada lhe causava mais azia do que algo que ele chamava de “síndrome da faixa esquerda”. Proença, fiel seguidor da organização e do respeito a todas as leis que o homem criou, surtava ao ver um cidadão tomando conta da faixa esquerda, aquela reservada aos carros mais rápidos. Isso é o auge da falta de consideração à humanidade. O elemento que costuma se arrastar nestas faixas, principalmente em uma pista expressa de alta velocidade, era o que Proença classificava como ditador. Simples assim. Você não poderia esperar nada mais de alguém que subjuga a pressa dos outros, dita a velocidade do trânsito e, ao mesmo tempo, manda às favas a lei. Ditador e anarquista, resumia. Kátia, aliás, uma vez percebeu o marido dirigindo com uma raiva acima do normal atrás de um lento senhor, e jura ter ouvido o marido dizer bem baixinho “Mussolini”, sem entender nada e com receio de perguntar qualquer coisa para o companheiro.

Um dia, Kátia, cansada das manias do marido, abandonou o Proença e voltou para a casa da mãe. No emprego, boa parte dos amigos de outrora começou a convidar menos aquela figura tensa – e que sempre era pego resmungando – para as cervejadas após o expediente. O mesmo aconteceu com os amigos de faculdade, cujas festas com cantoria acabaram gradativamente. Um dia, o chefe parece também ter cansado da presença do Proença e o sugeriu que “encarasse aquilo com uma oportunidade de começar de novo”. Proença não teve dúvidas. Os sintomas não deixaram apontar outro diagnóstico e sua tese, mais uma vez, fora confirmada com grande orgulho: Proença descobriu que era um chato.